Como muitos de vós têm
conhecimento decorreu em Abril, no deserto do Sahara, em Marrocos, a MarathonDesSables.
Foi uma ultramaratona que foi dando com alguma frequência nos meios de
comunicação social, mais ligados à modalidade, e nas redes sociais, até porque tivemos mais uma grande prestação
do Carlos Sá e da equipa I Run
4 Hope, tendo alcançado o 2.º lugar por equipas e 8.º à geral. Mas, no
meio de tantos profissionais da modalidade, há os amadores, aqueles que abdicam
de tanta coisa para se preparem durante meses para este exigente desafio.
É o caso da Ana
Leça Umbelino, uma Madeirense que iniciou e brilhantemente concluiu este desafio.
Deixo-vos a descrição intensa e apaixonada da sua travessia do deserto. Um
exemplo de determinação e uma motivação para também atravessarmos os nossos
desertos….
Por Ana Leça
Umbelino….
“Parece incrível que
já passou um mês desde que terminei a MarathonDesSables (MdS)!
É
algum tempo, mas só agora me sinto capaz de partilhar o impacto que esta
aventura teve em mim. Parece que precisei deste mês para digerir e integrar a
experiência. Finalmente as palavras saíram! E são muitas…
Na partida da 1ª etapa da MdS deste ano
alinharam-se 1108 pessoas de 49 países, e percorremos juntos 257 km no deserto
do Sahara em Marrocos, ao longo de 7 dias de prova. Completaram a prova 973
pessoas – incluindo eu!
Foi
uma semana de imersão numa natureza dura e quente: a dormir no chão; a
transportar às costas a roupa, cama e comida; a tomar banho com meio litro de
água; a acordar e adormecer com um nascer e pôr-do-sol fantástico; e com um céu
estrelado como teto acolhedor nas noites frescas do deserto.
O
primeiro dia foi o êxtase total: UAU! Finalmente a viver o meu sonho dos
últimos 4 anos, a fazer uso do treino intenso dos últimos 14 meses. A partida é
dada ao som da música Highway to Hell dos AC/DC, e sente-se a alegria dos mais
de 1100 participantes – mal sabemos o que nos espera!
Começamos
por atravessar os 12 km das belíssimas dunas de Merzouga, e uma tempestade de
areia mostra-nos que o deserto “não está para brincos”. Para agravar, a minha
mochila está pesada “para burro” - de carga e não para mim! São 8,5kg mais os 3
da água que recebemos ao arranque – ui! Doem-me os ombros só de me lembrar.
Afinal,
as recomendações do meu treinador Rory Coleman de cortar no peso, incluindo na comida - mesmo que tenha
um pouquinho de fome - estavam certas…. Este peso todo é que não!
À chegada do 1º dia já se vê escrito
nalgumas testas, incluindo na minha, “sabia que isto ia ser duro, mas assim
tanto??”.
Confortam-me
as mensagens que recebo impressas em papel no final do dia, e as palavras
cheias de energia positiva, força e motivação que recebo de todos aqueles que
me acompanharam, entre família, amigos, conhecidos e agradáveis desconhecidos.
Todos os dias carregaram as minhas baterias – OBRIGADA!
O 2º
dia foi o mais duro para mim. Chegaram as bolhas nos pés, e a dada altura
parecia que tinha canivetes a entrar de rajada em cada sola do pé. Pior do que
as dunas, é aquele terreno plano, mais plano que um aeroporto, enorme a perder
de vista, cheio de pedrinhas afiadas, em que mesmo que lá andasse a fazer ballet
aterrava sempre em cima de bicos.
E a pessoa anda, e anda, e anda, e está
sempre no mesmo sítio. Com as mesmas pedras. O mesmo calor. As mesmas dores - umas
dores tão fortes e permanentes que parecia que estava a ter outro filho. Ou
melhor, dois filhos ao mesmo tempo, um por cada pé!
Comecei
a entrar em desespero, e a dúvida chegou. Pensei: “Bom, seja como for, não
tenho que fazer isto, vou ali à organização e desisto: quem gosta de mim, vai
continuar a gostar; e quem não gosta… azarinho!”
Mas a
dor que senti só de imaginar desistir era insuportável! “Os pés e o corpo podem
doer, daqui a uns dias estão bem. Agora, a dor de desistir vai durar a vida
inteira. Não! Desistir não é uma hipótese.”
Então
tive que arranjar uma estratégia, para acalmar as emoções, e tomar conta do
corpo, pois quando as emoções sobem, a inteligência desce!
Nesta
prova há muito mais do que andar (sim, andar, porque correr está quieto, foi
pouco ou nada!). É preciso gerir a hidratação; tomar os sais na quantidade
adequada (em falta causam paragens musculares, incluindo cardíaca e em excesso
provocam retenção de líquidos e dores nas pernas); cuidar da nutrição mesmo
quando não apetece comer; manter a temperatura do corpo baixa.
E há
que ter o discernimento e clareza para conseguir ler os sinais do corpo,
percebendo se são sinais de alerta ou se são as emoções a tomar conta do sitio.
Interessante. Difícil. Enfim, era isto que eu ansiava experienciar em mim
mesma, mas caramba, tive que pagar com o corpinho!
Arranjei uma sequência de ações para cada
km que segui religiosamente a partir do 3º dia. Nos
primeiros 200m de cada km, um check-up físico (como me sinto em cada bocadinho
do meu corpo, uma espécie de raio-x mental). Nos 200m seguintes, fazer uma
técnica respiratória do yôga que mantém a temperatura do corpo baixa. Dos 400
aos 500m, fazer de conta que estou em turismo: tirar fotografias, falar para a
gopro, passear. A segunda metade do km, vocalizar mentalmente um mantra, para
aumentar a concentração e serenar a mente. Adicionalmente, parar 3 min a cada
5km, para além dos postos de controlo, e tirar a mochila para dar um descanso
às costas. Bem, no meio disto tudo, parece que mexer as pernas é o mais fácil!
Esta estratégia funcionou bem e no final
do 3º dia sentia-me melhor do que no final do 1º.
O 4º
dia era o dia mais longo, com 84,3 km para percorrer. Até então, o máximo que
tinha feito era 43km. Ia fazer 84,3km pela primeira vez, depois de três dias
consecutivos a andar e já com 112,8km nas pernas.
A
estratégia para este dia tinha que ser um pouco diferente: chegar o quanto
antes ao posto 3, até ao qual os tempos limites eram curtos. Depois, os tempos
espaçavam, até um total de 34h de tempo limite.
À
partida escolho um par de pernas para seguir, com um ritmo suficientemente
rápido, mas que eu conseguisse acompanhar. Segui uma senhora britânica.
Excelente. Ficou tão ritmado que os pés até ficaram dormentes, e deixei de
sentir dores.
Num
instante me pus no posto 1, recolho a água e avanço sem parar. Há agora que
subir uma montanha, o El Otfal Jebel, uma descida divertida quebrando a
monotonia do deserto, e seguir até ao posto 2 no km 21,7.
O sol
já vai alto e o calor aperta quando atravessamos o lago seco. São 3 ou 4 km que
parecem 100: sempre igual, sempre quente, sempre concentrada para manter as
emoções numa caixinha.
Mas é
neste lago que os meus dois demónios saltam cá para fora e saem definitivamente
do escuro. Por um lado, o medo de não chegar lá, o medo de falhar – a última
vez que falhei um sonho demorei anos a recuperar, e o medo criou raízes.
Por outro lado, o medo da integridade física. Quero chegar ao fim, sim, mas não a todo o custo – quero voltar inteira.
Por outro lado, o medo da integridade física. Quero chegar ao fim, sim, mas não a todo o custo – quero voltar inteira.
Parece
que os vejo ali à minha frente – é o delírio do calor.
Assim como assim, converso com eles, dou-lhes a mão e avanço. De mãos dadas com os meus medos.
Assim como assim, converso com eles, dou-lhes a mão e avanço. De mãos dadas com os meus medos.
É no
km 30, quando paro para descansar à sombra de umas rochas, que volto a
encontrar a senhora britânica que me levou depressa até ao posto 1, nessa mesma
manhã. Só que não a encontro da melhor forma, teve um choque de calor e está
ligada ao soro. Treme que nem varas verdes quando lhe entornam água pela cabeça
abaixo, pois a sua temperatura tem obrigatoriamente que baixar. Está de tal
forma que têm que lhe cortar a t-shirt para continuar a arrefecer. A sua MdS
ficou por ali.
Esta
mulher representa os tais demónios que falei. Sim, é preciso acelerar e
arranjar um ritmo para avançar. Mas esse ritmo tem que garantir a vida, senão
tudo pára. E é assim, no deserto, e lá fora. O equilíbrio, a dualidade.
Depois
deste episódio com a senhora britânica, sigo a processar até ao próximo posto.
Nas várias descrições que li e ouvi sobre a Marathon des Sables, quase todas
diziam que não dá para explicar a experiência: cada um vai lá viver o “seu”
deserto, conhecer os seus fantasmas, queimar o que estivesse velho e mudar o
que houver para transformar. É isso.
No
posto 4 recebemos um tubo fluorescente para pendurar na parte de traz da
mochila quando anoitecesse. Observa-se um carreiro de luzes fluorescentes ao
longo do caminho, engraçado.
Acompanho
o sol a pôr-se e as estrelas a chegar. A temperatura desce e… começo a correr!
Até então não me tinha apercebido no real impacto da temperatura no corpo e na capacidade de me mexer. Estava quente sim, e até certo ponto não me incomodava – acho que estava mentalizada para isso, afinal é um deserto!
Até então não me tinha apercebido no real impacto da temperatura no corpo e na capacidade de me mexer. Estava quente sim, e até certo ponto não me incomodava – acho que estava mentalizada para isso, afinal é um deserto!
Era já meia-noite quando chego ao km 55,
no posto de controlo 5. Sento-me numa cadeira de pano que por lá havia, e
fiquei imóvel, a saborear o céu. Não porque quisesse, mas porque por mais que
desse a ordem, o corpo não se mexia. “Pronto. É aqui e agora. Neste deserto
agreste, com um céu lindo de morrer. Obrigada vida, foste boa.”
Passou-se
uma hora. “OK, parece que não foi desta”. Já me conseguia mexer ligeiramente. O
suficiente para tirar o saco cama da mochila e estender-me ao comprido mais uma
hora. Acordei com um italiano maluco (como eu!) a praguejar em inglês, italiano
e sei lá mais o quê. Está na hora de me por a andar, pensei.
Arrumei
a mochila, respirei fundo e foquei-me nos 10 km que teria que percorrer até ao
próximo posto. Se pensasse em sequer mais um metro, o corpo bloqueava.
Como
é que se come um elefante? Às fatias, bem fininhas. Cada passo, cada fatia. Um
de cada vez. Não foi nada fácil este retomar do posto 5. Depois de dar a
entender ao corpo que ia dormir, fazê-lo levantar e continuar a andar, quando
todos os processos biológicos já estão no modo off – não há justiça!
Estava
uma noite delirantemente bonita, aqui o céu parece que é mais tudo: mais
profundo, mais brilhante, mais estrelado, mais presente.
A
dada altura dou comigo sozinha, sem ninguém à distância da vista. Apenas eu, o
céu, as estrelas e as luzes dos pauzinhos fluorescentes que aqui e acolá marcam
o percurso. Vou a caminhar sobre aquele chão interminável cheio de pedrinhas
bicudas, onde cada passo doí até à alma. Nem sabia que a alma chegava aos pés.
Começo a rir, às gargalhadas, não consigo parar. Devo estar maluca, perdi o
juízo, o pouco que me restava.
O
resto da noite fi-la quase toda na minha companhia, à parte de um ou outro
ratinho do deserto (são bonitinhos, pequeninos e brancos, brilhavam com a luz
do frontal). Um passo de cada vez. Sem pensar. Sem parar. Demorei quase 3 horas
a fazer cada bloco de 10km entre os postos 5 e 6, 6 e 7. Acho que até o meu
filho de 5 anos fazia aquilo mais depressa!
Quando
arranco do posto 7 para os últimos 9 km até ao acampamento, já estava a
amanhecer. Não era o que eu queria, mas foi o possível. Parei quase uma hora
nos postos 6 e 7, o corpo não deixava que fosse de outra forma.
Estes
últimos quilómetros são em linha reta, sempre a ver o acampamento. Parecia um
filme de terror, ando, ando e não saio do mesmo sítio.
A
temperatura começou a subir muito mais rápido nesta manhã do que nas
anteriores, e neste plano infindável não havia nada para além do chão e das
pedrinhas, nem um arbusto ou pedra para me sentar um instante a recuperar
fôlego. Felizmente aparece um carro da assistência médica e fico lá parada uns
minutos na sua sombra a refrescar as ideias. Como é que eu ia arranjar força
para me arrastar até à meta?
Passa
por lá um rapaz, acho que irlandês, e apanho boleia dele até ao fim. Falámos,
falámos, falámos, e assim enganámos o tempo.
Foram
26 horas, 38 minutos e 6 segundos. Uma energia brutal entra em mim no momento
em que cruzo aquela meta. Chego à tenda com um sorriso de orelha a orelha.
Este
dia é passado a dormir e a descansar, convivendo com os companheiros da tenda
9.
Vou
para a 5ª etapa com a sensação de que são “só” 42,2km. Canja de galinha!
É um
dia agradável – ok, nesta fase as bolhas de água, os canivetes nos pés e os
ombros dormentes já fazem parte da minha normalidade, faço a maior parte do dia
na companhia de um senhor com nacionalidade americana mas que nasceu no Paquistão,
estudou noutro sítio que não me lembro e vive na China.
Conversador
e bem-disposto, temos o gosto pela vela e pelos barcos em comum. Um dia a
caminhar no deserto deu para contarmos a história da nossa vida um ao outro,
com o à-vontade interessante que há quando se tem este diálogo com alguém que
potencialmente nunca mais iremos encontrar. Foi giro, e assim cortámos a meta.
A última grande meta.
O que
não foi assim tão giro foi ter que esperar pelo dia seguinte e caminhar mais
17km da etapa de caridade até chegar ao fim e à tão ambicionada medalha. Não
havia necessidade. Mas é assim, às vezes temos de fazer o que temos de fazer.
Apesar disso, foi um dia bem passado, na companhia do António
Vale, “irmão” português da tenda 9, e que tornou mais curtos estes
17 km.
257
km. 7 dias. 64 horas a percorrer o deserto. Foi uma semana longa, intensa,
dura, quente.
Foi
uma semana completa e de partilha. Com os meus companheiros da tenda 9, partilhei
barrinhas, frutos secos e comida liofilizada (aquela comida de expedição, seca
e cheia de condimentos para disfarçar o sabor estranho que nos faz dá valor à
comidinha de casa).
Mas
também sentimentos, bolhas nos pés, gargalhadas e dores musculares. Estavam lá
sempre quando eu chegada (sim, eu era a tartaruga da tenda!), com um sorriso
amigo, as aventuras do dia para partilhar e uns bocados de fita e eosina para
ajudar a cuidar dos pés e das costas! Vocês foram a minha família, apoio e
motivação ao longo daqueles 7 dias: António Vale, Joao Silveira,
Palmira Kopi Kopi Kopi, José Cabral, Jonathan Hewlett, Carlos
Sá - Ultra Runner. OBRIGADA!
Conheci
também o Angel do Peru, que me acompanhou no duro 2º
dia, o Adil dos EUA, a Louise do Reino Unido. E o Mario
Machado, que participou na primeira edição da MdS, e nos acompanhou
a cada dia com humor e boa disposição.
Para além de todos aqueles com quem fui falando e não me lembro nem do nome nem do país.
Para além de todos aqueles com quem fui falando e não me lembro nem do nome nem do país.
A Marathon des Sables fez-me ver, viver,
sentir a FORÇA: a minha, a dos outros, a da natureza. Uma natureza a quem todos
nós pertencemos, e não o contrário. Por mais arranha-céus que se construa,
telemóveis que se invente ou viagens à lua que se faça, nós somos propriedade
da mãe-natureza, ponto final.
Mas
nós também somos parte dessa mãe-natureza, e temos em nós esta força, esta
energia, esta capacidade imensurável de crescer, superar, transformar. De matar
e fazer nascer. É uma opção de cada um.
Observei
nos olhos dos homens e das mulheres que comigo percorreram este deserto a
dúvida, o medo, o cansaço. E mesmo assim, avançaram. Outros, bem fisicamente,
não aguentaram a pressão.
É
preciso querer. E depois, acreditar. E depois, avançar. E se vierem os medos,
as dúvidas, as inseguranças, dar-lhes a mão, compreender a sua presença e
avançar na mesma, com medo e confiança ao mesmo tempo.
Venho mais FORTE, mas sobretudo mais HUMILDE.
Obrigada, #MdS! Obrigada #deserto do #Sahara!”
Obrigada, #MdS! Obrigada #deserto do #Sahara!”
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